Pequena veleidade aos olhos do cidadão-comum, derradeira tentativa de salvar a honra por parte de quem o escreveu. Eis, ao que se resumiu, o debate gerado em França após a publicação em 2001, do livro «Affaire Elf, affaire (*)». O título é per si sintomático de um mal-estar nacional, perante a dimensão daquela que foi a maior crise de que há memória na Vª República. O autor, Loïk Le Floch-Prigent, engenheiro de formação, tem um percurso atípico na alta administração francesa. Não é oriundo das grandes écoles por onde passou a maioria dos dirigentes gauleses, nem tão pouco veio do mundo da política. Contudo, François Mitterrand não hesitou em fazer dele um dos mais importantes gestores públicos de França, tendo-lhe sido entregue o destino de empresas como a Rhône-Poulenc, a Gaz de France, a SNCF ou a Elf-Aquitaine. E foi precisamente durante o seu mandato na Elf (1989-1993), que testemunhou e mandatou alguns dos acontecimentos que espoletaram o nebuloso caso Elf, cujos contornos permanecem, ainda hoje, por esclarecer em muitas das suas dimensões. Na condição de arguido, e após seis meses em prisão preventiva, o autor decide, antes do tribunal ler a sentença, contar a verdade. É neste contexto que publicou o presente livro, em estreita colaboração com o jornalista Éric Decouty, sob a forma de uma entrevista semi-estruturada. Le Floch-Prigent promete contar tudo aquilo que sabe sobre o «Caso Elf». Mas procura também limpar o seu nome, e denunciar, «de forma probante» (p.21), o trabalho que a Justiça «deixou por fazer»...
É pois pela Justiça que o autor começa o livro. Considera-se indignado com um sistema judicial que acusa de ter recorrido a «métodos inaceitáveis» (p.24), de ter favorecido alguns arguidos e de ter procurado provar a sua culpabilidade por todos os meios. Denuncia também a intervenção da classe política, que tentou impedir a abertura do processo (p.32), para depois canalizar contra ele todas as suspeições. A descoberta de novos escândalos, nomeadamente a venda de armas a Taiwan ou o financiamento pela Arábia Saudita de várias campanhas eleitorais, terá limitado o poder de pressão por parte de políticos influentes. Mas mais do que tudo, terá sido o número de processos em curso contra Le Floch-Prigent, conjugado com as injustiças de que diz ter sido vítima, que contribuíram para o «descalabro judiciário» (p.37) a que assistiu.
Elucidados os propósitos, o autor descreve-nos a estreita relação de confiança que estabeleceu com o Presidente François Mitterrand (por quem diz sempre ter nutrido uma profunda admiração, p.56), e a forma como este nunca hesitou em lhe atribuir cargos de responsabilidade. Mas quando chegou à Elf, estava longe de imaginar aquilo que veio a encontrar: um «Sistema Elf» (p.59) bem rodado. Prigent procede então à descrição minuciosa da forma como esta empresa petrolífera serviu, desde a data da sua criação, a financiar não só partidos como também o próprio Estado, os serviços secretos, diversos intermediários e vários políticos franceses, os quais acusa de crime de enriquecimento ilícito (p.85). O sistema das «comissões» que vigorava, com as quais diz nada ter a ver (p.79), é-nos contado ao pormenor, nomeadamente através da sua utilização para financiar a expansão da empresa nos mercados do Leste europeu, de África e da América Latina. Na verdade, as comissões mais não são do que o braço financeiro de uma série de «redes corporativas» (p.96) que vão desde partidos até empresários, passando pelas diversas orientações políticas da administração francesa, embora o autor refira que o Partido Socialista se encontra relativamente ausente do «aparelho Elf», talvez por este ter sido criado pelo General de Gaulle.
Este sistema complexo foi desenhado e dirigido por um homem: André Tarallo, representante da direita francesa na empresa, e Director financeiro durante mais de vinte anos. Todas as «missões e comissões ocultas» (p.113) passaram por ele, assim como a condução das operações em África, onde a empresa fez cair governos, promoveu guerras, e vendeu armas aos líderes que apoiou, em troca de petróleo a custos muito inferiores aos valores dos principais mercados internacionais (p.123). Para financiar todas estas operações, a petrolífera francesa criou na Suíça o banco FIBA, uma forma de transaccionar o dinheiro da Elf para os destinatários sem deixar rastos. A empresa surge aos olhos do leitor como uma «obra-prima» da engenharia institucional, tendo não só servido a assegurar a independência energética do Estado francês, como também a promover uma política de tipo neocolonialista. O autor não tem dúvidas de que a Elf constituiu uma estrutura paralela ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (p. 61).
É precisamente desse ministério que emana um dos muitos escândalos ligados a este caso: «empregos fictícios para amigos e amantes caras» (p.136). Mas outros também utilizaram a Elf sem rodeios: a Presidência da República para ajudar uma empresa têxtil em risco de falência («Affaire Bidermann», p.155), o Governo para impor a sua presença no Leste europeu, mas sobretudo, para auxiliar o Chanceler Kohl no apoio financeiro aos países do ex-bloco soviético («Affaire Leuna»).
A própria Elf não poupou meios para levar a cabo o seu negócio na área energética, independentemente das «redes» que dela se aproveitaram. A compra de poços de petróleo na Venezuela (através do suborno directo do Presidente venezuelano com autorização explícita do governo francês, p.200), ou a entrada da empresa no mercado espanhol (e o dinheiro que transitou para o governo de Felipe González e a família real espanhola, p.215), são disso bons exemplos.
Depois de ter descrito o «Mundo Elf», o autor termina o livro com três capítulos onde analisa, esclarece e comprova detalhadamente a sua situação financeira. Explica nunca se ter aproveitado da sua posição para beneficiar de fundos que poderia muito bem ter levantado: «não tenho um Ferrari, não tenho um iate, nem 300 m2 em Nova Iorque. Como dizia Molière, ganho dinheiro para viver, mas não vivo para ganhar dinheiro» (p.225). O autor faz uma distinção entre aquele que é o seu património privado, e aquele que era o dinheiro da empresa (logo do contribuinte). Refere também as condições em que adquiriu uma mansão no campo, compra que lhe valeu inúmeras acusações de enriquecimento ilícito na praça pública. Mas segundo Le Floch-Prigent, nem todos tiveram as mesmas preocupações éticas. É o caso de Alfred Sirven, que entrou para a empresa graças a ele, mas que rapidamente se distanciou do seu patrono, provavelmente devido ao fascínio pelo dinheiro, que «abundava em cada gabinete». O livro termina com um novo ataque ao sistema judicial, à classe política e às elites da França em geral, descritas como estando «completamente podres» (p.270). O «sistema Elf» financiou tudo e todos, e segundo o autor, continuará a financiar por muitos anos mais. Le Floch-Prigent apenas quer restabelecer a verdade, e nada teme com as suas revelações. Recusa equipará-las às ameaças de Alfred Sirven, cujo conteúdo poderia, caso viesse a ser revelado, «rebentar vinte vezes com a República» (p.247). Para o autor, chegou a hora do dossiê mais «explosivo» dos últimos quarenta anos se tornar judicial, e deixar de ser político (p.280).
É um homem ressentido que aqui encontramos. Ressentido e revoltado contra um sistema judicial contra o qual não poupa críticas: falta de independência, manipulação voluntária da Lei processual, desrespeito pelo habeas corpus, entre outras acusações. Daí a tentativa por parte do autor em fazer aquilo que não terá conseguido fazer em tribunal: defender-se, ser ouvido e revelar a verdade (ou a sua versão da verdade), sobre factos que presenciou mas com os quais diz nada ter a ver.
A forma como o livro está redigido, isto é, o recurso à entrevista, mostra-nos algum acautelamento perante a dimensão das revelações que são feitas: não acusa, apenas se limita a ir respondendo às questões incisivas – seja-nos aqui permitida alguma ironia – que lhe são colocadas por um jornalista politicamente incorrecto, que roça por vezes a impertinência. Mas trata-se de uma impertinência que legitima (o livro tenta-nos convencer disso) as respostas do entrevistado, que não foge a nenhuma questão.
Le Floch-Prigent dispara em todas as direcções. Critica não só a Justiça, como também a República, a classe política, antigos amigos e aqueles que o deveriam ter ajudado e não o fizeram (como se tivessem ficado favores por cobrar). As revelações, embora assustadoras, não contribuíram para um esclarecimento cabal da verdade. Apenas foram desvendados alguns factos, mas ficamos com a impressão de que mais do que revelações, foram feitas ameaças. Perante estas, a Justiça defendeu-se como pôde (o livro(**) da juíza Eva Joly surgiu como uma resposta clara a esta obra), enquanto que a classe política protegeu-se como soube, isto é, como sempre...
(*) LE FLOCH-PRIGENT, Loïk, Affaire Elf, affaire d’État, Paris, Gallimard, 2001, 303 pp.
(**) JOLY, Eva, Est-ce dans ce Monde là que nous voulons vivre, Paris, Gallimard, 2004, 384 pp.
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